Por André Carmona
Então, de supetão, ele despertou. Abrindo os olhos, se viu mergulhado numa pilha de papéis; uma porção de contas não pagas misturada a jornais amassados, velhas anotações e fotos que lhe remetiam outros tempos. Na verdade, dera-se conta de que não havia sequer pregado os olhos a noite inteira, nem por um minuto. Pior, fora torturado por seus próprios pensamentos. Como um zumbi insone, remoera antigos sentimentos – ao menos tentara, incessantemente – para que pudesse se sentir mais humano, pois, dentro de seu peito, já não morava nada além de uma deletéria apatia.
Então, de supetão, ele despertou. Abrindo os olhos, se viu mergulhado numa pilha de papéis; uma porção de contas não pagas misturada a jornais amassados, velhas anotações e fotos que lhe remetiam outros tempos. Na verdade, dera-se conta de que não havia sequer pregado os olhos a noite inteira, nem por um minuto. Pior, fora torturado por seus próprios pensamentos. Como um zumbi insone, remoera antigos sentimentos – ao menos tentara, incessantemente – para que pudesse se sentir mais humano, pois, dentro de seu peito, já não morava nada além de uma deletéria apatia.
Há algum tempo, perdera
contato com todos os seres humanos que antes faziam parte do seu extenso e
ostensivo círculo social. Não se recordava exatamente se eram dias, semanas ou
meses. Não, meses, não. Talvez algumas longas semanas, pois a provedora de
serviço de televisão não havia cortado o sinal ainda; e ele era invadido, como
um violento rio que deságua no mar, por arrebatadoras e furiosas notícias
vindas da televisão, seu último elo com a sociedade que, outrora, havia ajudado
a construir.
Uma situação inusitada e
irônica, já que, quando um jornalista empregado, jamais obtivera a chance de
encarar o produto final de seu trabalho de forma tão íntima e verdadeiramente
translúcida. Ao contrário, encarara sua labuta como outra qualquer, não havia
tempo para desfrutes; a máquina do sistema o obrigara a escrever, escrever, sem
pensar, sem reflexão, tudo aquilo que queriam que ele dissesse, e não o que
realmente gostaria de ter dito. A redação - localizada no suntuoso edifício, de
uma das maiores e decadentes editoras do país -, com todos os seus pormenores,
o havia consumido durante os últimos 15 anos de sua vida.
Após sua conturbada e premeditada
demissão, passou, de certa maneira, a apreciar a antagônica sensação de
liberdade e prisão. A crise econômica mundial, dia após dia, jogava mais e mais
gente nas sarjetas. Entretanto, nada mais importava, dizia-lhe seu
subconsciente, isentando-o de culpas passadas. E destarte, ele analisava de
forma ácida e sóbria, como se fosse um espírito pairando sobre seu próprio
corpo, todas as notícias que, a charmosa e cínica âncora do jornal, reportava
com inocente insensatez.
Desde o primeiro sinal de
percepção aguçada, a primeira vez que lhe ocorrera todos estes estapafúrdios
sentimentos, começara a sentir-se como Winston Smith – célebre personagem do
romance 1984, do escritor George
Orwell. O sintoma inicial se apresentou ao ouvir que, por ordem do governador -
e com apoio de toda a mídia -, a polícia militar havia reprimido,
truculentamente, os milhares de manifestantes que lotavam a praça central da
capital, e protestavam em prol da melhoria dos serviços prestados pelo Estado.
Em
seguida, eclodiu a notícia da hipotética espionagem do governo estadunidense
sobre o governo brasileiro, de quem supostamente era parceiro, embora,
ideologicamente, o comando tupiniquim se sentisse mais atraído – teoricamente -
às ideias de esquerda, a Cuba; país que, há décadas, sofre na carne – de sua
população – os efeitos do cruel embargo econômico promovido pelos Estados
Unidos.
Uma rude incoerência,
profetizada por Orwell como duplipensamento,
ou, em suas palavras: “Saber e não saber, estar
consciente de sua completa sinceridade ao exprimir mentiras cuidadosamente
arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões que se cancelam
mutuamente, sabendo que se contradizem, e ainda assim acreditar em ambas; usar
a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade e apropriar-se dela” (...) “esquecer o quanto fosse
necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a
esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a
sutileza máxima: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se
inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra ‘duplipensar’ era necessário usar o duplipensar”.
Conceito
que se fez ainda mais presente, quando, por alguns minutos, deixou-se levar por
seus pensamentos, concluindo que, os próprios americanos, tão defensores da
democracia, prontamente se pusessem a invadir qualquer nação que discordasse de
seus princípios capitalistas e diferisse de sua cultura de consumo. O dinheiro
era o próprio Grande Irmão – referido
no livro como o “sábio” governador, líder de todas as nações -, símbolo de
controle total, de poder; que nos vigia e nos subjuga, não obstante as nossas
tentativas de escapar de suas afiadas garras.
Atordoado pela constatação, tão logo depois de retornar de sua divagação, questionou-se:
“Como um romance – dito ficcional – escrito na década de 40 poderia ser tão
real, tão atual?”. Empapado de suor, levantou-se. Prosseguiu cambaleando até a
cozinha, onde tomou um gole de água, acendeu seu último cigarro e murmurou: “Puta
que o pariu, George Orwell estava certo!”.